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O Mecanismo das Sociedades de pensamento, por Augustin Cochin

A liberdade absoluta do indivíduo garantia da escravatura das massas.

sexta-feira 1 de Abril de 2011, por António

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Da loja maçónica ao sindicato, da célula do partido ao Parlamento, a máquina democrática promove uma liberdade análoga à liberdade de movimento de uma locomotiva nos carris. Impossível afastar-se do caminho da opinião elaborada secretamente por aquilo a que Augustin Cochin designa por “círculo interior”. Se o rebanho votar mal, ele será “trabalhado” até que a moção preparada pelo círculo interior seja aprovada. Esta moção será então apresentada como um progresso, como algo de adquirido, e que nada mais o poderá questionar.

Introdução de “Vive le Roy”

Quadro de uma conferência 1907, Apêndice I, in “La revolution et la libré-pensée”, Edições Plon, Paris 1924, pp. 255 e seguintes.

Aviso: Os títulos foram acrescentados pela redacção de “Vive le Roy” para facilitar a leitura “on line”.

Finalidade da sociedade de pensamento: elaborar a opinião

Uma sociedade de pensamento! Talvez não tenhamos ainda compreendido o sentido e o alcance desta criação do século XVIII. É uma instituição nova, com um futuro radioso e que viria a ter uma acção decisiva no curso das ideias e da opinião.

Desde sempre houve sociedades, corpos, seitas. Da mesma forma que ideólogos, teóricos da política. Mas ó a partir de 1750 é que existem Sociedades de filósofos, reunidos pelo gosto da pura especulação e o “amor da verdade” o que cria um laço social entre e lhes permite “formar corpo” como dizia Voltaire.

Não se trata aqui de uma associação profissional, formada para um estudo especial, nem de uma liga de interesses formada para pressionar o governo.

O objecto da Sociedade não é limitado nem de ordem prática, ela apenas visa a opinião. Trata-se:

 De esclarecer os cidadãos
 de fazer avançar o “progresso das luzes”
 de despertar o espírito público
 de “interessar as pessoas pelo bem público”, isto é, pela política

São sociedades “tendo por base a mais perfeita igualdade”, organizadas segundo as leis da pura democracia: leis idênticas, para uma modesta sociedade isolada, ou para toda uma ordem social:

 Governo pessoal do povo
 Anarquia
 Tudo pelo povo, ausência de representantes; delegados
 Liberdade absoluta de opiniões
 Igualdade dos membros, todas as decisões tomadas por escrutínio:

Não há nada de mais democrático nem de mais banal.

O interior de uma sociedade de pensamento

Mas este corpo tem uma alma. Alguns membros são filósofos, dir-se-ia intelectuais, patriotas, isto é, inimigos do espírito de corpo e do espírito de seita ou de pátria, dir-se-ia hoje humanitários, e então esta máquina tão inofensiva torna-se numa arma terrível. porque ela é maneável e unida.

**Maneabilidade da sociedade de pensamento pelo governo oculto do Circulo interno.

Cem membros; mas votações constantes: quinze assíduos, estes donos da sociedade, fazem entrar quem quiserem, nomeiam a junta. Teoricamente eles não são nem mais nem menos do que os outros, na prática eles são tudo: viram-se nessa manhã, etc., fazem as moções, e são sempre livres de recomeçar em caso de fracasso. Vontade geral livre “como a locomotiva nos carris”. É o círculo interno

**Princípio da prática social: Toda a deliberação oficial deve ser precedida de outras oficiosas, toda a deliberação é profana em relação a um iniciado.

Este princípio da máquina é necessário: não nos esqueçamos de que numa sociedade não há nem autoridade absoluta (nobreza), nem autoridade pessoal (representante com poderes extensos), o povo age constantemente, o que levaria a sociedade a desfazer-se, caso não houvesse uma pratica que corrigisse esta teoria absoluta.

Ela é inevitável: é resultado da própria frequência das reuniões, o povo reúne-se constantemente, é impossível que pessoas ocupadas, sérias, etc., estejam sempre presentes.

Pelo contrário, a própria frequência das reuniões e dos debates cria uma ocupação para um novo tipo social: o agente da revolução, o manipulador das sociedades inglesas, o secretário de loja que se especializa na manipulação das manifestações eleitorais. Ele é o elo de ligação com o centro, que detém todas as rédeas da reunião e das votações, e que consegue sempre angariar apoiantes, tratando para tal de desencorajar e de impedir tudo aquilo que poderia impedir a sua moção de ser aprovada.

Como exemplo da perfeição do seu funcionamento: nas secções de Paris, não havia quase ninguém e só miseráveis. Ao votar a lei de 5 de Setembro de 1793, elas votam como previsto; o mesmo para os jacobinos, as moradas de 44000

Unidade da sociedade de pensamento

Unida. Tal é a condição de vida da sociedade, a de existir e assegurar o funcionamento da máquina. Mas não será isto uma contradição com o seu próprio princípio? De forma alguma.

O que é necessário para o funcionamento da máquina?

 A desagregação completa do universo eleitoral.
 O isolamento dos indivíduos

E o que exige a união?

 A ausência de toda e qualquer ideia partilhada entre os seus membros, o que poderia fazer-lhe concorrência.
 A destruição de todos os organismos políticos, corporações, a pátria;
 a destruição de toda a crença, de toda a ideia partilhada, de todo o espírito de corpo, de todo o patriotismo, e sobretudo do ideal religioso:

Isto pode chamar-se igualmente a liberdade, porque paralelamente aos apoios, há também laços, barreiras, disciplinas.

Uma máquina para subjugar

**Obter ordem sem recurso à autoridade, graças à forma da sociedade, ao seu modo de funcionamento.

É assim que encontramos aqui o liberalismo negativo. É o único sentido que numa “Sociedade” pode receber o termo liberdade.

Assim, tal como vimos, o liberalismo negativo só poderia desenvolver-se plenamente numa Sociedade de pensamento.

Assim a doutrina está de acordo com a forma política, uma é a alma da outra: onde quer que se veja florescer estes princípios podemos ter a certeza que existe uma Sociedade, e inversamente, toda a Sociedade conduz inevitavelmente a estes princípios.

Assim:

 não se pode dizer que a anarquia seja a desordem; é apenas a ausência de autoridade, é pelo contrário a própria ordem.
 não se pode dizer que o regime da liberdade absoluta, em que o povo decide sempre tudo, seja o regime da independência, é apenas a ausência de obediência: a máquina está sempre presente para manter a disciplina mais férrea, só que ela é inconsciente.

Mas há uma forma de servidão mais dura do que a obediência: é a servidão inconsciente.

A liberdade absoluta, garantia de submissão à máquina

Mas era este ponto que eu gostaria de frisar: é que só aparentemente é que há aqui uma contradição. Não só a servidão de facto da máquina não se opõe à liberdade de direito da Sociedade, como necessitam uma da outra, esta liberdade é a garantia desta submissão e por sua vez esta submissão é a garantia desta liberdade.

Na realidade qual é a garantia de unidade de pensamento de uma sociedade de livre pensamento? É evidentemente o seu mecanismo. É preciso que as mesmas moções sejam feitas na mesma altura nas diferentes Sociedades, e votadas da mesma forma em todas elas. E isto só é possível pelas correspondências entre elas e pelo trabalho do círculo interno.

O que é que faz que estas sugestões sejam acatadas? O círculo não pode nem comandar, nem pregar, nem defender, nem mesmo mostrar-se. Ele não tem nenhuma das escapatórias das seitas, ou dos partidos, que têm uma autoridade moral. Ele não pode apelar nem à consciência, nem à honra, nem mesmo ao interesse. Estamos numa anarquia, não o esqueçamos. Apenas lhe resta a inconsciência, a inércia.

Como obter a docilidade dos eleitores

Vejamos como se vota numa Sociedade filosófica. Qual é a garantia da docilidade dos eleitores?

 Exclusão das pessoas de fé, políticas ou religiosas, inimigos da liberdade.

 Exclusão dos nobres nobilitados mesmo dos ricos, suspeitos desde 1793. É antes de mais a ausência dos burgueses, das pessoas instruídas, que têm ideias próprias, que poderiam criticar a “conformidade”, discutir as ordens do dia emanadas da multidão: a revolução tem horror dos “homens de talentos”, de pessoas de ideias e de experiência que julgam por elas próprias. Estes não vieram porque não gostam da retórica, do barulho, das frases.

 É o espírito de imitação, que põe o homem desprovido de todo o vínculo à mercê do primeiro impulso, fazendo-o volúvel.

 É o isolamento material, porque eles não se conhecem, ao passo que a primeira preocupação do comité secreto foi a de constituir uma claque, um circulo interno, uma minoria sem dúvida, mas uma minoria que se sente apoiada pelo centro porque ela segue as suas instruções e reprime as mais leves veleidades de independência por parte dos profanos.

 É sobretudo o isolamento moral dos eleitores, a ausência de todo o sentimento, de ideias, que poderiam dar-lhe uma vontade autónoma e permitir-lhe resistir às sugestões da máquina. É por isso que a máquina tem sempre pressa em naturalizar e iniciar os que vêm de outras regiões: eles não têm nenhum dos constrangimentos de ordem moral que poderiam incomodar os locais; a mesma predilecção pelos desclassificados, pelos despromovidos sociais, por todo o tipo de tarados, pelos teóricos, pelos falhados, pelos descontentes, pelos rejeitados da vida, por todo aquele que não tem qualquer vínculo a coisa alguma nem lugar em sítio algum.
A preguiça de uns, a idiotice, a ignorância, a timidez de outros, isolamento material, de pessoas que nem se conhecem nem se compreendem, mas sobretudo isolamento material de pessoas que não têm nem fé nem convicções, numa só palavra inércia: eis as condições de sucesso da máquina, as garantias da ortodoxia social, é a tudo isto que os agentes revolucionários chamam, e muito bem, o peso morto da opinião.

E que maravilhosa forma de assegurar o isolamento material é a liberdade! A liberdade revolucionária que destrói os corpos profissionais, os corpos de Estado, os corpos provinciais, que declara guerra a todos os organismos vivos que formavam a antiga França.

É daqui que vem esta obsessão pelo “libertar”que vemos hoje actuar, a libertar as pessoas contra a sua vontade: todas as leis revolucionárias são leis de libertação,

 a lei dos departamentos
 as leis contra as congregações religiosas
 contra as corporações
 contra os corpos de Estado, Sorbonne e Parlamento
 contra os corpos provinciais

Como se pode ver o individualismo revolucionário é a primeira condição do bom funcionamento da engrenagem da máquina.

Do mecanismo que produz as ideologias

**A teoria social do filosofismo das Luzes

Não é necessário insistir na doutrina do filosofismo: sabe-se bem o que é o progresso da Luzes. Esta doutrina, radical e absoluta, fundada na perfeição da natureza e que se poderia resumir pela frase de Quesnay a propósito do filosofismo económico: “laissez faire, laissez passer”.

O primeiro teórico desta corrente é Fenelon, “o belo espírito quimérico”, com o “quietismo”: Há disciplinas e regras? Mas o amor de Deus vale mais do que tudo isso: “laissez faire, laissez passer”. Esta ideia é transposta para a moral, para a economia, para a política. É numa só palavra a teoria social que acabamos de descrever.

**Gostaríamos de compreender

 como é que este jogo pueril, iniciado de uma forma lúdica nos salões literários acabou por influenciar a opinião
 como é que os conversadores de 1730 se tornaram pontífices
 os paradoxos de salão em sistemas
 reuniões de libertinos em sessões de filósofos
 a república das letras, esta simpática alegoria, numa insuportável realidade
 o filosofismo uma regra de conduta prática

A opinião é elaborada e mantida artificialmente por um mecanismo social

É que as Sociedades de pensamento são sociedades, a opinião é aí defendida, mantida por um mecanismo social.

O filosofismo deve à máquina a consistência e a continuidade que a vaidade da ideologia só por si não poderia fornecer-lhe.

As Sociedades de pensamento devem-lhe:

1 O facto de se manterem fechadas, secretas. É graças ao circulo interno que as pessoas de fé, ou de convicções políticas, ou somente com experiência que poderiam impedir a abstracção excessiva dos debates são eliminadas. “Os princípios são puros”, diz-se, isto é, devidamente abstractas e assim os debates tornam-se um treino sério. As sociedades são assim verdadeiros espaços isolados onde um novo adepto se submete a uma iniciação semelhante aquela que teria se colocasse nas mãos de um médio; é certo que não lhe é pedido para abandonar a sua personalidade, as suas convicções, mas para sair durante algumas horas por semana do mundo real.

2 De ser dirigidas pelos melhores patriotas:

 os ideólogos mais abstractos
 agrónomos de salão
 políticos sem mandato
 comerciantes desinteressados
 moralistas
 teóricos
 todos os que estão à margem da sociedade.

Porque é a favor destes que se exerce a selecção mecânica acima descrita: são os mais fervorosos, os mais zelosos.

Assim a ideologia precisa da organização social, isto é, de um meio factício, forçado, de acção sobre a opinião. Se os homens estivessem livremente reunidos, em reuniões abertas, as luzes não poderiam progredir. O filosofismo precisa de uma estrutura social para agir sobre a opinião.

Assim, da mesma forma que o mecanismo social pressupõe a liberdade e igualdade puras, da mesma forma o filosofismo, a teoria da liberdade só pode progredir e agir sobre os acontecimentos sem a estrutura do mecanismo.

Esta ideia pressupõe esta organização e vice-versa.

A máquina social dá poder aos falhados

E quando estão unidos desenvolvem-se, a forma adquire uma força natural, as ideias fanatizam-se.

Exemplo do seu desenvolvimento, uma vez unidos:

A máquina jacobina, um poder impressionante:

 O pequeno numero de chefes e a sua nulidade. A França inteira submetida, nem sequer a demagogos, mas a pálidos figurantes como Collot, Châlier, Hanriot; Laclos é outro exemplo
 A perfeição do mecanismo: 44000 filiados, nem uma só dissidência. “Fazer falar a nação”, “deixar flutuar a opinião”: as moradas dos 44000 que chegam à Convenção foram enviadas oficiosamente pela Sociedade mãe já preparadas.
 Obediência absoluta, comparação constante com uma Igreja. Desmoulins, Fénelon, Hérault-Séchelles: “O núcleo da igreja dos Jacobinos”, as “Heresias”, missas, sociedades populares. Passividade completa das 40 sob as secções, soldados do exército popular.

E, no entanto, a ideia e a forma são sempre as mesmas. Temos sempre de um lado a tirania inconsciente, do outro uma teoria pura.

E chega-se a este absurdo de ter por chefes, não revolucionários de talento, nem sequer demagogos com grande verve, mas uns falhados, “Collots”, “Marats”, ou pontífices estúpidos: Petion, Bailly, Rolland. E por evangelho uma fraseologia tão miserável quanto a que se encontra nas colunas do monitor.
É que, apesar de tudo, nós ainda estamos numa Sociedade de pensamento.