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O Legitimismo, por Guy Augé (1979)

Ou a livre obediência

sexta-feira 6 de Maio de 2011, por António

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Na cidade tradicional o bem comum é realizado pela obediência livremente consentida ao rei legítimo, na medida em que este mesmo está submetido a uma ordem superior a toda a vontade humana. Com a modernidade política, a vontade do homem apoderou-se de toda a ordem de que não é a fonte; já nada se lhe pode opor. Assim todo o poder que se exprime em nome da vontade geral, poder democrático ou autocrático é potencialmente totalitário. No entanto muitos monárquicos e católicos, esquecendo-se do que é legitimismo, esperam conseguir restaurar a polis com as armas da modernidade: uns pelas urnas, outros pelo golpe de estado do bom ditador, ou mesmo os dois...

Sumário
Introdução de Vive le Roy
O que é o legitimismo
O legitimismo sua génese e sua realização
A Revolução contra o legitimismo
A ideia de legitimismo na actualidade
Os monárquicos que se deixam seduzir pelas sereias da democracia

Introdução de Vive le Roy

Excerto da obra de Guy Augé: Sucessão de França e regra de nacionalidade – O Legitimismo – Distribuição: D.U.C. Paris (1979) – pp 121-127

Título original de excerto: Postface. Conde de Paris ou Duque de Anjou. Algumas reflexões sobre o futuro da monarquia francesa. (1ª parte)

**Aviso: Os títulos foram acrescentados pela direcção de VLR para facilitar a leitura online.

O que é o legitimismo?

A monarquia cristã postula o legitimismo, e fornece-nos o modelo mais perfeito.
Mas o que é na realidade o legitimismo?

É a justificação, quer do direito de governar dos governantes quer do dever de obediência dos governados, um “génio invisível da polis” como dizia o historiador italiano, Guglielmo Ferrero, um dos que mais se debruçaram sobre o tema.

Exorcizando o receio mútuo quer do chefe quer dos subordinados, o legitimismo permite a convivência e a hierarquização do grupo.

O legitimismo : sua génese e sua realização

**Um velho problema como obter uma obediência não servil?

A Antiguidade tinha tentado encontrar uma solução; por vezes tinha-se aproximado, sem nunca encontrar uma solução satisfatória. O Estado pagão confundia-se com o chefe, e, quando este era tirânico, o primeiro também o era.

Foi o cristianismo que trouxe ao mundo a solução para este drama político: e fê-lo distinguindo a função do homem que dela estava revestido, e que apenas exercia um ministério, ou um serviço para o bem comum.

A obediência não era devida ao indivíduo mas ao bem comum que este tinha por missão prosseguir, ou por outras palavras, e em última análise, a Deus no qual este bem assenta, donde procede toda a autoridade, e que pode obrigar em consciência.

No entanto o contributo do cristianismo para a teoria da legitimidade manifestou-se segundo diferentes teologias e filósofos. Há uma grande distância do augustinianismo político ao tomismo, e num meio cultural inicialmente melhor cimentado do que o nosso pela comunidade de fé.

**A legitimidade augustiniana

A força admirável da legitimidade régia e cristã tal como a tinham concebido os teóricos do augustinianismo da alta Idade Média assentava não só numa visão clerical do Universo, onde o espiritual se subordinava ao espiritual, onde a razão enfraquecida se confiava inteiramente à Revelação, onde a Graça submetia a natureza como Cidade de Deus integrava a cidade dos homens, mas ainda sobre a comunicação do interior que permitia a comunhão religiosa: podia-se assim contar com a lealdade dos confiante dos súbditos, e o sentido das suas responsabilidades por parte do príncipe cristão, dependendo a sua salvação do destino dado aos seus povos. De resto a liturgia da sagração referia-o em toda a sua grandiosidade.

**A legitimidade tomista ou a legitimidade completa

A ressurgência de um aristotelismo antigo, inteligentemente “baptizado” por S. Tomás de Aquino, inaugurou um humanismo cristão, uma certa reabilitação da razão (somente ferida mas não aniquilada pelo pecado) uma visão realista da natureza. Para S. Tomás de Aquino, discípulo da Aristóteles, há um direito natural de Estado, uma ordem social natural, anterior ao cristianismo, existente mesmo à parte da ordem religiosa e do plano da Revelação. Isto é, uma autonomia do temporal que este grande clérigo libertava do clericalismo, ao mesmo tempo que mostrava o contributo transcendente da religião, a única que podia fornecer a chave desta natureza harmoniosa e ordenada que Aristóteles tinha contemplado com o realismo ingénuo do pagão.

Por isso para S. Tomás, se a graça transcende a natureza, a natureza é autónoma; o Estado, contrariamente ao que se passava com os augustinianos da alta Idade Média, não se funde com a Igreja. Os tomistas não são teocratas, e se é certo que todo o poder vem de Deus, isto só se passa em abstracto. Quanto ao resto, o lugar da doutrina, dos legistas do direito romano e das competências profanas alimentadas pelo pensamento grego, estava assegurado.

A monarquia segundo S. Luís, contemporâneo do santo, é um tipo de “governo misto”, aristotélico-tomista, nem sacerdotal, nem ateu, nem despótico, mas temperado e moderado.

A Revolução contra a legitimidade

[**O princípio de autonomia da modernidade: a soberania baseia-se em si mesma.*]

Infelizmente, a síntese tomista, do século XII, tão realista, não se manteve; ela foi ultrapassada pelas correntes nominalistas, que estão na origem da reflexão moderna e nos novos conceitos de soberania, de monarquia pura, de contrato social, de positivismo legalista.

Coube à Revolução francesa levar esta tendência ao paroxismo sob o nome de soberania popular, definida segundo Rousseau, como expressão da vontade geral.

Enquanto que a soberania real, mesmo no auge do absolutismo dos Bourbons, tinha por objectivo o bem-comum, e nunca tinha pretendido justificar-se a si própria, a nova soberania popular fez triunfar o positivismo jurídico, assimilando o direito às leis, e as leis à vontade soberana do legislador. O povo tornava-se num soberano que já não precisava de ter razão para validar os seus actos.

[**O poder autónomo é um poder sem limite, totalitário*].

Os liberais naturalmente estão na origem da Revolução francesa, e o liberalismo, nascido nos círculos aristocráticos do “Ancien Regime”, quis limitar as prerrogativas do executivo, corroer o Estado; mas a ideologia do contrato social, verdadeiramente moderna e nominalista, oriunda de Hobbes e de Rousseau, não deixava nenhum contrapeso ao poder soberano do Leviatan-legislador.

Conferir ao “povo”a soberania do Leviatan não se limitava, por muito que se tenha dito, a uma simples mudança do titular da soberania: era uma mutação decisiva do conceito de soberania, a porta aberta ao totalitarismo. Porque o tirano de outrora bem podia arrogar-se plenos poderes: mas ele deparava-se sempre com uma Antígona, «essa pequena legitimista» dizia Maurras!, para lhe relembrar a existência de princípios superiores; e o rei absoluto, de resto timidamente legislador, sabia que o direito natural assentava na observação de uma natureza exterior, e que tinha de governar recorrendo ao «Grande Conselho».

Pelo contrário, o soberano do novo regime oriundo da Revolução tem esta pretensão formidável de ser, não o veículo ou intérprete do direito, mas fonte de todo o direito, de toda a justiça. Segundo a expressão incisiva de Jean Madiran, a lei expressão da vontade geral colocava no plural o pecado original.

Pouco importa que de seguida o totalitarismo tenha variado, quer assumidindo a forma de uma assembleia legislativa, quer de um chefe carismático plebiscitado, ou que a natureza das coisas ou a força das tradições lhe tenham colocado alguns obstáculos: a exorbitante e subversiva pretensão revolucionária, expressão da democracia moderna subsistia com a virtualidade totalitária.

Basta olhar para os regimes actuais, todos democráticos, como convém (isto sem ironia!), para apreciar o corolário da nossa «grande revolução», como lhe chama o Conde de Paris.

A ideia de legitimidade hoje

[**Um tesouro transmitido pelos meios monárquicos tradicionalistas*]
Durante muito tempo a ideia de legitimidade manteve-se circunscrita aos meios monárquicos tradicionalistas.

Reconhece-se habitualmente a honra a Talleyrand de dela ter dado a teoria durante o Congresso de Viena em 1814-15, afim de melhor defender, em nome da solidariedade dos príncipes europeus, os direitos de uma França vencida militarmente e ressuscitada politicamente.

Conhece-se sobretudo o legitimismo do século XIX, a reivindicação do ramo dos Bourbons contra o orleanismo usurpador de 1830, e o partido que encarna esta causa liderada pelo Conde de Chambord.

Assim “contaminada”, a noção, decididamente situada, não podia deixar de agradar a republicanos e democratas; ela era quase cuidadosamente evitada pelos maurrasianos “fusionistas” por razões evidentes, mantendo-se esta bandeira defendida pelos “Brancos de Espanha”.

[**O regresso das preocupações legitimistas*]

Mas algo de curioso aconteceu há algumas décadas: “ressuscitou-se este belo cadáver”, segundo a expressão de Pierre Boutang.

Como foi o caso, de início de uma forma teórica, da sociologia alemã de Max Weber e daqueles que o liam: um pouco mais tarde, e desta vez de uma forma “existencial”, no rescaldo da guerra franco-francesa, em 1940-44 e, por arrastamento, ao longo dos anos seguintes (questão argelina, governo do general De Gaule e da sua sucessão).

Hoje em dia a noção de legitimidade política retomou o seu lugar, são-lhe dedicadas obras filiosófico-políticas, e foi retirada do seu gueto e banalizada.

Sobe determinado ponto de vista é sem dúvida um progresso, visto que é aqui que reside uma das chaves da reflexão política fundamental.

É também uma fonte de confusão, porque o conceito sendo relativizado, perdeu consistência, e acabou por se conotar com ideias antagónicas. O que é o que se passa quando os monárquicos inventores do termo, procuram reaver o que lhes pertence!

[**A formulação impossível de uma legitimidade democrática*]

A legitimidade, para os nossos politicólogos contemporâneos, está necessariamente subordinada à ideia dominante de direito dominante, que provem do escrutínio democrático.

Ora, historicamente, associou-se de uma forma algo arbitrária a técnica de representação eleitoral e de votação maioritária à nova legitimidade democrática. Estas aproximações não eram necessárias: elas teriam seguramente chocado os atenienses do tempo de Péricles, para os quais só o sorteio exprimia verdadeiramente o igualitarismo democrático, ao passo que a eleição continuava a ser uma técnica aristocrática.

Quanto ao voto maioritário, os clérigos da Idade Média redescobriram-no como simples expediente, para escapar aos inconvenientes graves da indecisão no caso de não haver unanimidade. A ninguém ocorreu a ideia de que a soma dos votos designava necessariamente o melhor; o processo nada tinha de perfeito sabia-se que se tratava de algo de empírico e grosseiro, e que se considerava a major pars como sendo a sanior pars, uma maioria mais qualitativa do que quantitativa,

Da mesma forma, a ideia antiga de representação social (que evoluiu muito ao longo da história do Ocidente) não estava ligada a um rito eleitoral. O Rei hereditário, o prior, o senhor de uma determinada terra podiam tão bem representar o populus quanto o deputado eleito do círculo.

A relação moderna entre eleição popular e representação legítima não tem qualquer fundamento racional; quanto à sacralização do princípio maioritário que confere à maioria dos sufrágios expressos mais um o valor de um oráculo, não se trata de misticismo mas sim de mistificação.

E então das duas uma:

ou se leva a sério esta mistificação e ela leva ao mais abominável dos despotismos, o que é exercido sobre as almas e que a nossa época teve o privilégio de testar;
ou então vemos nele um simples expediente aritmético cada vez que se trata de tomar uma decisão importante.
A pretensa “solução democrática” que os nossos políticos tanto gostam de referir está condenada a oscilar entre esta disformidade e esta enfermidade.

Por isso é impossível não nos apercebermos do fracasso, das limitações, a vaidade e também o perigo permanente da nova legitimidade popular: como se não bastasse cada campanha eleitoral encarrega-se de nos lembrar tal facto.

Os monárquicos que cedem às sereias da democracia

E eis-nos chegado ao ponto em que monárquicos de quem se esperaria uma firme refutação do embuste democrático contemporâneo, sacrificam-se à vaca sagrada da nossa época.

Alguns permitem-se mesmo dar lições de democracia ao presidente da República francesa, e mesmo Pierre Boutang, habitualmente pouco conformista, assegura que “o termo já não o choca”.

Se “o termo” exprimia a necessidade de um consenso popular, ou se, simplesmente, se entendia por democracia um dos regimes descritos pelos velhos pensadores gregos, todos nós estaríamos de acordo e até nos poderíamos, não só nos acomodar ao termo, como nos declarar anti-democratas sem chocar ninguém. Infelizmente, todos nós sabemos que não é disso que se trata hoje, e que não se trata de um termo inocente. “A ambiguidade do anti-democratismo" é incontestável, mas esta provem sobretudo da ambiguidade fundamental da democracia moderna.

Sendo assim não podemos senão temer, para o futuro do movimento monárquico francês (e de outros países, N.T.), o resultado dos compromissos com a democracia do Conde de Paris, seguido por alguns neo-orleanistas. Este príncipe, que não tem legitimidade jurídica como cremos ter demonstrado, nem sequer consegue propor uma doutrina política na qual a legitimidade monárquica tradicional se pudesse reconhecer.