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As origens da Modernidade

Uma humanidade desfigurada pela sua dignidade perdida

sexta-feira 2 de Setembro de 2011, por António

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Se para os Antigos a dignidade adquiria-se com uma vida virtuosa submetendo-se às leis da nossa natureza, para os Modernos, a dignidade do homem reside na sua liberdade. Liberdade em relação a toda a tradição, a toda a autoridade e a toda a instituição. A partir deste momento o homem já não aceita mais leis que não tenha sido ele próprio a fazer, assim sendo as pessoas, as nações, a política autonomizam-se – elas deixam de ter um limite ao desejo de poder. Mas esta falsa liberdade defendida pela Modernidade bem como o esquecimento da dignidade virtuosa apenas conduziram a humanidade à sua “alienação crescente” segundo a expressão de Hannah Arendt* e a uma hedionda caricatura dela própria.

*A idade moderna com a alienação crescente do mundo que produziu, levou a que o homem para onde quer que ele vá nada mais encontra do que ele próprio. (Hannah Arendt)

As origens da Revolução francesa

A revolução ocorrida em França em 1789 constitui um tal sismo que somos levados a pensar que todo a “grande reviravolta” começou nesse mesmo ano, e que de alguma forma haveria um “antes” e um “depois” 1789, radicalmente opostos um ao outro a todos os níveis. Tocqueville, na sua dupla vertente de historiador e sociólogo, demonstrou a falsidade deste ponto desta análise do ponto de vista político, administrativo e social: alguns elementos da França pós-revolucionária existiam já, pelo menos em germe, no final da monarquia, a começar pelo centralismo parisiense ou a progressiva igualização da sociedade.

Outro erro de perspectiva consiste em pensar que as concepções intelectuais e morais mais condenáveis da nossa época teriam a sua origem nesta revolução, e mais não seriam do que a sua consequência inevitável. Ora é preciso recuar muito antes da revolução para encontrar os verdadeiros fundamentos da Modernidade, com o seu ateísmo, materialismo, cientismo, utilitarismo, hedonismo, liberalismo, individualismo, e naturalmente o igualitarismo.

Por “Modernidade” entende-se aqui, evocar esse conglomerado de crenças, de pensamentos, de posturas intelectuais e morais que se formaram no final da Idade Média, na sequência de um desejo de ruptura com o pensamento religioso tradicional e com a filosofia herdada dos Antigos. A Modernidade desenvolveu-se por sucessivas vagas intelectuais, e é a primeira destas vagas que este pequeno artigo pretende abordar.

Veremos assim, nas páginas que se seguem, como é que, entre o fim do século XV e o primeiro quarto do século XVII, Pico da Mirandola, Maquiavel e Galileu estabeleceram os primeiros fundamentos destes três dogmas modernos que são:

a afirmação de que o homem não tem outra essência senão a liberdade radical que é a sua;
a afirmação de que a política é um campo de actividade totalmente autónomo a toda e qualquer consideração moral ou religiosa;
por fim a afirmação de que, tal como a política, a ciência não tem que prestar contas a nenhuma outra entidade que ela própria e que ela encontra a sua justificação não tanto na capacidade de atingir a verdade mas antes no domínio que ela dá ao homem sobre a natureza e as suas leis.

Giovanni Pico da Mirandola (1463-1494)

**Breve biografia de Pico da Mirandola

Jovem nobre originário da região de Modena, Pico da Mirandola parecia possuir tudo para ser feliz. Muito rico, com charme, possuía também grandes capacidades intelectuais. Ele dedicou-se a estudar todos os campos do conhecimento da época.

Associado a isto, ele era alguém a quem faltava uma certa estabilidade e ponderação, o que o levou para algumas aventuras mais ou menos agradáveis.

Ele teve vários problemas com a Cúria romana devido às suas posições algo provocatórias e acabou mesmo por preso durante um certo tempo no castelo de Vincennes a pedido das autoridades eclesiásticas durante uma viagem a França.

No final da sua curta vida, ele será seduzido pela intransigência, para não dizer fanatismo, de Savonarola, e fará o voto de percorrer o mundo descalço para pregar a palavra de Deus. A doença e uma morte precoce não lhe permitiram realiza-lo.

**Um texto fundador do pensamento moderno

Já Deus pai, arquitecto soberano, tinha criado segundo as leis da sua sabedoria impenetrável o templo augusto da sua divindade, esta casa que é o mundo que nós vemos. Ele tinha dotado de espíritos a região supra-celeste, animado com almas eternas os globos no éter, e dotado de uma multidão de animais de todas as espécies de dejectos e a fanga(ver no dicionário) do mundo inferior.

Mas uma vez a obra terminada, o artesão desejou que houvesse alguém para admirar uma tão bela obra, e a sua grandeza. Foi por isso que, de acordo com Moisés e Timeu, que só quando Ele acabou a sua obra é que decidiu criar o homem.

Mas não havia nenhum arquétipo para lhe servir de modelo, nem tesouro para lhe deixar de herança, nem lugar para este contemplador do universo em toda a terra. Já tudo estava cheio, distribuído pelas ordens superiores, intermédias e inferiores.

Mas não convinha ao poder paternal desfalecer, como que esgotada, no final da sua obra. Não convinha à sua sabedoria hesitar, por falta de conselho, perante uma obra tão necessária. Não convinha ao seu amor benevolente que o homem, que deveria louvar nas outras criaturas a generosidade divina, se visse obrigado a condena-la para si mesmo.

O perfeito artesão decidiu finalmente que seria comum tudo aquilo que tinha pertencido a cada critura. Ele tomou então o homem, esta obra de imagem indistinta, colocando-a no meio do mundo disse-lhe assim:

Eu não te dei um lugar específico, nem um rosto característico, nem um dom particular, oh Adão, afim de que o teu lugar, o teu rosto e os teus dons, sejam o fruto da tua vontade e que tu os conquistes e os possuas por ti mesmo. A natureza possui outras espécies regidas por leis por mim estabelecidas. Mas tu, ao qual nada limita, pelo teu próprio arbítrio, nas mãos do qual eu te coloquei, tu definir-te a ti mesmo.

Oh soberana generosidade de Deus Pai! Soberana e admirável felicidade do homem! A ele é-lhe dada a possibilidade de ter o que deseja e de ser o que quer.

Giovanni Pico da Mirandola; Ruvres filosóficas.

Foi com o texto acima referido que Mirandola escreveu em 1486 para ser apresentado perante a Cúria Romana para se defender das acusações de heresia que se marca a ruptura do pensamento moderno com o pensamento tradicional, o da Antiguidade com o da Idade Média.

Este texto é uma verdadeira carta do humanismo que se desenvolve a partir da Renascença, um humanismo que parece ser ainda cristão, mas que na realidade é mais uma máscara do que a expressão de uma verdadeira fé ortodoxa.

Aquilo que Pico quer demonstrar aqui, é que se o homem está em parte ligado ao mundo e à natureza, ele ocupa nela um lugar nitidamente distinto de todos os outros seres vivos, e isto não porque ele possua uma alma divina mas porque só ele possui uma total liberdade. A sua essência é de estar em perpétuo movimento para realizar todos os seus desejos, mesmo os mais loucos. O homem a partir de agora é o artesão do seu próprio destino.

**Tradicionalmente o homem é digno se agir de acordo com a sua natureza de animal político querida por Deus

É certo que sob determinados aspectos o pensamento de Mirandola parece estar em continuidade com a ideia tradicional de que o homem ao nascer apenas tem uma humanidade virtual, competindo-lhe então realizar a sua essência, realizar o seu potencial, a sua humanidade.

Com efeito, no pensamento clássico, há uma distinção clara entre:
 o facto de ser homem puro produto do processo biológico e
 o facto para o homem de aceder à dignidade de pessoa humana, o que pressupõe o sucesso de um processo educativo e moral.
Mas na concepção tradicional este acesso do homem ao humano que está nele não pode senão fazer-se na e pela sociedade.

**Segundo os Modernos o homem é digno porque é livre

Ora a sociedade desaparece do horizonte de Pico
 O homem já não reconhece quaisquer modelos a seguir, nem autoridades a quais se submeter
 Ele possui uma liberdade absoluta que rigorosamente nada deverá limitar sob pena de is contra a vontade do Criador
 A partir de agora o homem por si só é capaz de ultrapassar os limites que a sua natureza lhe impõe. Pela sua vontade e pelo poder da sua inteligência, ele é capaz de ultrapassar os seres que na hierarquia divina lhe são superiores, nomeadamente os anjos.

E o que é verdade para o homem enquanto indivíduo, é-o igualmente para as sociedades, para as culturas, para os períodos da História. A Providência já não orienta os homens e as sociedades. O futuro é uma página branca que só ao homem compete escrever.

Mas, se tudo é possível, isso significa que o passado nunca poderá condicionar o futuro.
 O passado de nada serve, e as tradições mais não são do que hábitos que os homens livres deverão desligar-se.
 A liberdade do homem assim concebida implica um direito absoluto de crítica a todas as instituições, e por isso a todas as autoridades.
 Para Pico, a própria fé religiosa não pode ser vista como assente numa Revelação imutável: ela também tem uma história, e a sua verdade só será plenamente conhecida por aquele que pela sua inteligência conseguir compreender plenamente o evoluir histórico, isto é no final dos tempos.

**A liberdade moderna ou seja a libertação em relação a toda a tradição, instituição e autoridade

A propósito do texto de Pico falámos de “verdadeira Bíblia da idade moderna”. Sob uma forma religiosa, salvaguardando aparentemente a omnipotência do Criador, Pico na realidade separa a Escritura da definição da natureza que dela resulta. Segundo Pico aquilo que Deus revelou a Adão não é a lei divina à qual ele se deve submeter, mas sim que ele é o criador da sua própria lei.

Consequentemente, nenhuma transcendência, nenhuma autoridade humana, nenhuma tradição, possui a autoridade de dizer ao homem aquilo que ele deve ou não fazer. A partir de agora nada impede a humanidade de tomar como programa para as suas acções futuras as palavras da serpente do Génesis: “Vós sereis como deuses”.

Aquilo no qual se passa a fundamentar a dignidade do homem, não é, como era o caso para os antigos, a sua natureza de de ser racional, nem sequer que ele tenha vocação para se tornar, pelo sacrifício de Cristo, filho adoptivo de Deus, como no Cristianismo. Aquilo que funda a dignidade da condição humana, é o facto de ele se identificar com uma liberdade total, “inalienável e sagrada” como dirá a Declaração dos Direitos do Homem. O que é ser livre na perspectiva moderna, senão ser livre de se fazer o que se quiser sem poder ser impedido, isto é, ter direitos nos quais nenhuma instituição política ou social, pelo menos teoricamente, pode tocar ?

Nicolau Maquiavel (1469-15279)

**Breve biografia de Maquiavel

Florentino de nascimento, Maquiavel terá uma vida desordenada e agitada, passando de uma libertinagem desenvergonhada aos problemas governamentais mais delicados. Durante os catorze anos que passou ao serviço dos Medicis e teve um cargo de elevada responsabilidade na administração ducal, tratando da política externa, redigindo instruções para os diplomatas florentinos e conduzindo várias missões, nomeadamente em França.

Diplomata astucioso e cortesão sem escrúpulos, ele terá uma carreira brilhante, o que todavia não impedirá de algumas obras políticas nomeadamente “O Príncipe” o que lhe trouxe uma imensa fama desde o século XVII até à actualidade.

**A política separada da moral

Maquiavel era certamente de convicção republicana, ou mesmo democrata. Apesar de conhecer a França e admirar o regime monárquico pelo seu equilíbrio simultaneamente firme e flexível, ele mantém-se individualista e prefere os “estados populares” à monarquia.

Ele faz a apologia do povo, isto apesar de ele ser geralmente ingénuo e poder ser facilmente enganado. Ele considera inevitável um conflito entre o interesse do príncipe e o do país, e que um mau príncipe é pior do que uma má assembleia. Se acrescentarmos que Maquiavel é um patriota italiano desejoso de unificar o seu país, criando nomeadamente um um exército nacional, compreender-se-á facilmente a admiração que tantos políticos modernos lhe consagram.

Antepassado moderno do republicanismo e do nacionalismo, aquilo que o distingue do pensamento político tradicional é a sua recusa de que a moral possa ter uma palavra a dizer na condução da política. A política para ele deverá ser uma actividade completamente autónoma quer da religião quer da moral que dela decorre.

Se nos seus discursos o Príncipe pode invocar princípios morais, ele fá-lo apenas para garantir a sua legitimidade aos olhos do povo ou para enganar os seus inimigos. Em matéria de política todos os meios são bons desde que eficazes e que permitam atingir com os menores custos possíveis os objectivos desejados.

**O Estado autónomo ou o Estado como um fim em si mesmo

Esta autonomia radical da política totalmente inconcebível para os antigos como para os doutores da escolástica mais não é do que o surgir com Maquiavel de uma nova concepção de Estado. A partir deste momento este passa a ser considerado como um valor em si, independente dos fins prosseguidos, e um absoluto.

E se o Estado surge assim como um fim em si mesmo, é porque para Maquiavel, não só se pode construir nada com homens maus, com relações instáveis, com os seus egoísmos sempre presentes. Gananciosos, invejosos e ladrões, os homens são também cobardes e só o receio da autoridade, a submissão à razão de Estado os pode levar a participar ao bom funcionamento da sociedade.

Ora, tudo deverá ser estruturado em função do interesse da sociedade, do seu poderio, do seu prestígio, mesmo se para tal os homens devessem sacrificar a sua alma, ou aquilo que eles consideram ser a sua alma.

No entanto, e apesar de discretamente não crente, Maquiavel acomodou-se muito bem a uma religião de Estado, aquela que é maioritária no pais em questão, mas na condição de que a mesma seja uma força moral ao serviço do Estado: de certa forma uma religião civil.

**A posteridade de Maquiavel

Daqui resulta a introdução de duas novidades no pensamento político ocidental e que anunciam o surgimento da Modernidade.
 Por um lado, uma visão profundamente pessimista do homem, que mais tarde Rousseau e os seus discípulos definirão com mais rigor: do homem tal como ele é numa sociedade corrupta. O homem deixa de ser visto como o amigo espontâneo de outro homem para passar a ser visto como um lobo para ele.
 Por outro surge aquilo que, muito mais tarde, será uma palavra de ordem célebre de Charles Maurras no seu livro “Politique d’abbord”. Por outras palavras : ao abandonar o princípio da finalidade, o homem parte do princípio de que já não é necessário organizar o mundo de forma a que este esteja de acordo com o cosmos. Trata-se de de tomar o mundo e os homens tal como eles são e de procurar levá-los para onde eles não gostariam de ir se soubessem o que os espera. É o surgimento do “realismo político”, o qual no fim de contas apenas conhece relações de força no quadro das relações entre os diferentes egoísmos nacionais qual deles mais ilegítimo do que o outro.

A influência do pensamento de Maquiavel, o “maquievalismo”, será considerável quer junto de filósofos como Descartes (com algumas reservas), Hobbes ou Rousseau, quer junto de políticos como Bismarck ou De Gaule, isto só para citar alguns nomes.

É certo que as boas intenções não tornam uma política boa e a tarefa de um político não é a mesma da de um moralista. No entanto a grandeza de um chefe de Estado consiste precisamente em saber decidir e agir no âmago de uma tensão permanente e inevitável entre os constrangimentos inerentes à tomada de decisões eficazes e aquilo que exige a lei moral.

Galileu Galilei (1564-1642)

**Uma época de grandes descobertas astronómicas

Originário de uma família modesta de Pisa, Galileu estudou quer a filosofias quer as ciências, de acordo com o ideal humanista da época.

Em 1589, obteve a cátedra de professor de matemática em Pisa mas a sua relação com a Universidade complicaram-se rapidamente. Ele abandona então o seu cargo e lança-se no estudo da mecânica. É neste contexto que ele decide de demonstrar o erros da física tradicional herdada de Aristóteles.

Em 1609, Galileu tomou conhecimento da existência de um novo instrumento de óptica, a luneta, e decide ele próprio produzir um. Apesar de ignorar as leis da óptica, ele lança-se na exploração do céu. Em seguida publica um pequeno livro que veio revolucionar as concepções astronómicas em voga na época e que retomava as teses heliocentricas de Copérnico. Com efeito, o frade e astrónomo polaco Nicolas Copérnico (1473-1543) já tinha tido a intuição de que era o Sol que estava no centro do sistema solar e de que eram os planetas, entre os quais a Terra, que rodavam à volta dele. Aceite pela Igreja como hipótese, a sua teoria será recusada pelos seus contemporâneos visto alterar demasiado a visão medieval do mundo que colocava o homem no centro do universo.

Aquilo que se descobre nessa época, é a imensidão dos espaços siderais, é a semelhança de estrutura entre a Terra e a Lua, são as quatro luas de Júpiter que rodam claramente à volta deste planeta. Todas estas observações tornam mais credível o modelo de Copérnico, de planetas que rodam à volta do Sol, e que a Terra não é substancialmente diferente dos outros planetas. Ora isto constitui uma ruptura com crença tradicional de que o conjunto do céu rodava à volta da Terra, como se de um ponto fixo se tratasse.

**O “caso Galileu”

Em 1610, Galileu instala-se em Florença sob a protecção do Grão Duque e prossegue as suas investigações astronómicas.

Nessa época uma cisão intelectual surge no seio da Igreja:
 entre os partidários da astronomia tradicional, a única que aos seus olhos está de acordo com as Escrituras.
 e os partidários das novas teorias de Copérnico, retomadas e desenvolvidas, nomeadamente por Galileu.

Ora aquilo que está em jogo é, nada mais nada menos, do que a questão das relações entre a ciência e a religião.
Galileu interveio então no debate afirmando que a religião não tem nenhuma autoridade no campo científico. Isto representou da parte de Galileu um grave erro tático, porque significa afirmar que a ciência, embrionária do seu tempo, é a única fonte de verdade quanto à natureza, e por isso de reduzir o verdadeiro ao demonstrável segundo o método científico.

Uma queixa contra o cientista foi então entregue ao Santo Ofício. O caso é sério, e o Cardeal Belarmino, favorável a Galileu, tenta impedir o seu avanço, mas a recusa de deste último em admitir que de momento não existe nenhuma prova definitiva da rotação da Terra à volta do Sol, relança o processo. Com efeito só no século XIX é que será definitivamente demonstrado o movimento da Terra à volta do Sol.

Nestas circunstâncias, em 1616 a obra de Copérnico é colocada no Index e Galileu instado a nada mais referir nem escrever sobre a sua teoria astronómica, sendo-lhe no entanto deixada total liberdade de escrever sobre outras matérias.

Em 1623, o cardinal Barberini, que tem Galileu em grande estima, torna-se papa sob o nome de Urbano VIII. Certo do seu apoio, Galileu pede autorização para vir a Roma apresentar argumentos para defender a sua teoria, e poder assim anular a sanção de 1616. O Papa satisfaz-lhe o pedido mas na condição de apresentar um texto rigoroso sobre as duas teses em presença. Galileu não tem a mesma concepção de objectividade que os seus interlocutores eclesiásticos e comete o erro de apresentar a sua teoria como uma certeza sem apresentar a mínima prova (a única falsa demonstração que Galileu forneceu, implicava contra toda a evidência, uma única maré por dia).As reuniões com Roma prolongar-se-ão durante vários anos.

Em 1632, ele publicou uma obra “Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo”. Escrito numa linguagem um pouco ordinária e com piadas grosseiras ele representa o papa como um velho aristotélico e casmurro. Este livro vai fazer Galileu perder os sus últimos apoios sem no entanto convencer os seus inimigos.

A teoria de Galileu será condenada em 1633. Ele foi condenado a residência fixa de onde poderá continuar as suas obras tanto quanto a sua saúde lho permitir. É interessante notar que a sanção do Vaticano nunca será adoptada em França pelo Parlamento de Paris pelo que as obras de Galileu poderão sempre circular em França bem como numa grande parte da Europa.

**Nascimento do mito e alcance do seu símbolo

Galileu, para os homens dos tempos modernos e mesmo ainda hoje, surge-nos como um mártir da ciência, uma vítima do obscurantismo religioso. Um obscurantismo tanto mais execrável quanto o fundo da ques tão nos parece algo de fútil e, no limite, como pensava Descartes, não se tratava de um questão de palavras? Esta visão do caso Galileu é duplamente falsa.
 por um lado, a medida eclesiástica surge-nos mais como um apelo ao bom senso e à prudência, justificada pela presunção e pelos erros de comportamento do próprio Galileu, do que como uma sanção.
 Por outro lado, Galileu não se contentou de se opor aquilo que até então era visto como um dogma, ele opunha a Razão divina tal como ela se revela na natureza submetida à investigação científica, à Razão divina tal como a Igreja católica afirmava ser a única intérprete autorizada. Estávamos perante um conflito entre duas autoridades: a espiritual da Igreja por um lado, e a autoridade espiritual da ciência por outro.

Mas por fim e sobretudo aquilo que Galileu iniciou foi uma verdadeira revolução nom pensamento ocidental.
 Para os Antigos, como na Idade Média, a reflexão tinha como objectivo, não a ciência voltada para a acção, mas o conhecimento voltado para a contemplação. De forma que aquilo que Galileu afirma é inaceitável, quer para um filósofo fiel ao pensamento clássico, quer para um teólogo.
 A partir deste momento, o universo já não é aquilo pelo qual se manifesta o Logos divino, a Glória de Deus, mas é um conjunto de figuras geométricas e símbolos aritméticos que a razão deverá interpretar
 A partir deste momento, o olhar do homem inverte-se: voltado para os céus até então, ele volta-se então para a terra, e se ele ainda consegue descortinar o céu, é unicamente para nele descobrir os segredos necessários para aumentar o seu conforto.

**A ciência ao serviço da vontade de poder do homem

Uma nova concepção de ciência acaba de nascer, e o seu fim último já não é a verdade mas a utilidade. Quanto ao mundo, ele nada mais é do que o local que o homem deverá decifrar e não a manifestação visível do invisível, como era caso até então. A partir de aqui a ciência e a técnica que dela provem são postas ao serviço da vontade de poder do homem.

Deixa de haver limites e freios à vontade dos homens, à excepção dos religiosos mas isto também devido à persistência de motivos tradicionais de prudência, de economia, de preocupação, de harmonia e equilíbrio mas que com o tempo acabarão igualmente por ser abolidos.

Nenhuma organização política e social deverá escapar a esta racionalização e deverá ser reconstruida sobre bases inteiramente racionais.